Fundamentalismo anti-ambiental
Nos primeiros anos da blogosfera portuguesa, havia ainda a ilusão de conversar e discutir assuntos entre blogues. De esgrimir argumentos e exercitar o teclado. Mas as ideias estão feitas, a disponibilidade para grandes discussões não existe e a interactividade entre blogues diminuiu muito, praticamente desapareceu. Agora, principalmente na área política, está cada um com a sua agendazinha, em bicos de pés, a ver se aparece um tacho inopinado ou estrategicamente conseguido. Os comentários são um lixo monumental e até isso começou a dar jeito quando a censura forte e feia se instalou1. Agora opiniões genuínas não passam a moderação porque não, enquanto todo o tipo de lixo malcriado continua a ser publicado como prova alargada da imbecilidade de quem comenta e liberdade magnânima de quem escreve. Este fenómeno, observa-se mais à esquerda que à direita, julgo que é justo dizer.
Ontem, via Abrupto fui parar a um dos antigos blogues que visitava, o auto-proclamado “blogue de referência”, onde nas imortais palavras de um dos autores, na natureza “é tudo nosso” — o Blasfémias. E dando uma volta na diagonal, deparo com a comemoração do Dia da Terra pelo JCD, um autor que pontua as suas intervenções com humor — infelizmente raramente conseguido. Diz o JCD — com certeza com o seu característico aproximadamente humor —, que no Cafe Hayek está “um magnífico post de Don Boudreaux2“. É um ensaio a propósito de um trabalho de casa do filho, no sexto ano — o significado do Dia da Terra para o senhor Don Boudreaux.
Começa por agradecer ao capitalismo ter tornado as nossas vidas e ambiente, mais limpos e saudáveis. O senhor Don Broudreaux nunca ouviu falar de poluição atmosférica ou dos cursos de água, doenças cancerígenas ou cardiovasculares, em geral as chamadas doenças modernas. Sectários deste jaez só ouvem o que lhes interessa e em época capitalista com determinados princípios especialmente tremelicantes, cerram logo fileiras.
Está grato pelo automóvel, mas não o preocupam os efeitos colaterais desde a poluição ao desenho das cidades que obrigam milhões de pessoas a passar horas entre a casa e o emprego. Para não falar no efeito de estufa e muito menos no aquecimento global (uma forma de problema ambiental distante e altamente especulativa).
Também está agradecido pelo ar condicionado, a canalização e as fraldas descartáveis. Sabão e champô barato, pasta de dentes, fio dental, papel higiénico, pensos de plástico e sem dúvida outras conquistas do capitalismo, sem as quais a sua vida não teria sentido e seria vazia de significado.
Está grato pelos electrodomésticos como a máquina de lavar roupa que nos permite reciclar(!) a roupa utilizando-a várias vezes. Se bem que a palavra reciclar utilizada pelo senhor Don Boudreaux não tenha o seu verdadeiro significado, esta questão deve fazer sentido para um americano. Na série The Wire aprende-se que os rapazes das esquinas não lavam as t-shirts que utilizam até aos joelhos, compram novas.
Também está grato pela electricidade que permite iluminar as casas sem velas sujas, ou aquecer sem carvão, madeira ou outras substâncias imundas. Ao senhor Don Boudreaux não interessa evidentemente saber de onde vem a electricidade, ou se montanhas e vales são destruidos (Wikipedia) no processo, para que ele não tenha de lidar com a imundice.
Também está grato pelo plástico, mas não lhe interessando de onde vem, muito menos lhe interessa para onde vai. Se acaba no mar (Charles Moore, TED Talks), ou mesmo se tem solução. Minudências que não preocupam o senhor Don Boudreaux, que enquanto escreve ensaios para ajudar o seu pobre filho do sexto ano, se esquece que há pessoas que passam o Dia da Terra a recolher o lixo que todos produzimos.
Está agradecido pelos fertilizantes químicos que aumentam a fertilidade do solo prevenindo a má nutrição(!). Decerto não quer ouvir falar das vastas zonas mortas provocadas pela lixiviação dos fertilizantes para as linhas de água (Scientifica American), não vale a pena estragar tão bom ensaio com negativismo ambiental (bota-abaixismo, como agora se diz). Muito menos quer ouvir falar da fome que grassa por esse Mundo, incluindo no seu país, que aliás é também conhecido pela má nutrição do excesso e da obesidade.
E continua agradecido, pelas fábricas modernas e os combustíveis que as permitem operar e fazer texteis modernos e baratos para que até os pobres possam ter várias mudas de roupa limpa, sem esquecer os “corner boys” das cidades americanas, com a sua muda única. O senhor Don Boudreaux não quer que os gadgets que compra sejam fabricados em “sweat shops” com operários sem roupa limpa. Se é para trabalhar quase como um escravo, que seja com higiene.
Sendo a pessoa grata que obviamente é, não podia deixar de incluir os insecticidas modernos e produtos de limpeza que eliminam insectos e bactérias que de outra forma poluiriam(!) o nosso ambiente. A inversão de valores e de significados é uma das conquistas dos sectários anti-ambientais. Para eles o artificial é o novo natural, o natural são os poluentes. É curioso, ou melhor é estratégico. Repare-se que as inúmeras tecnologias limpas e que tentam de certa forma mudar o rumo dos acontecimentos, não conseguem a gratidão do senhor Don Boudreaux. E são filhas do mesmo capitalismo, mas não da mesma filosofia.
Por fim, a mensagem que interessa nestes tempos que questionam a cartilha do senhor Don Boudreaux: Está grato ao mercado que permite estes e muitos outros anti-poluentes(!) — força tão poderosa, que hoje gozamos o luxo inacreditável de podermos preocupar-nos (supostamente está a incluir-se) com formas(!) de problemas ambientais muito distantes e muito especulativas, como o aquecimento global ou a extinção de espécies. Quando se inclui a perda de espécies e o estado desesperado de muitas outras (Action Bioscience) no rol de problemas ambientais distantes e especulativos, um homem tem de dar de barato todas as questões relaccionadas com o aquecimento global. Bronco, é bronco.
Como outros fanatismos, o fanatismo anti-ambiental do senhor Don Boudreaux é propulsionado pela ignorância. Como bom fundamentalista que é, a sua ignorância não advém de algum infortúnio social, mas é cultivada. O senhor Don Boudreaux está agradecido por tudo e mais alguma coisa que lhe permita a auto-indulgência de plástico a que obviamente tem direito. Pode ser que um dia o filho ultrapasse a educação parcial que o pai lhe proporciona e lhe possa agradecer a herança ambiental desgraçada e perigosa que grato nega com os seus ensaios.
Eu não tinha o JCD por fundamentalista anti-ambiental. Dentro da piadética que cultiva lá ia dando uma no cravo, outra na ferradura, atacando essencialmente os ambientalistas por serem do contra e fazendo umas comparações pouco lisongeiras. Que ninguém diga que não mudo de opinião ou que nunca me engano. Este link no Dia da Terra, é uma vergonha inqualificável.
1 Aqui são apagados comentários insultuosos que com o actual nível de visitas, chegam a um ritmo de dois ou três por semana. Isso não é censura, é higiene mínima, que entre outras coisas, permite que comentadores com interesse sejam lidos.
2 É o senhor Don Boudreaux no site Exxon Secrets, as maçãs insistem em cair todas perto da árvore.
Uma resposta para“Fundamentalismo anti-ambiental”
Belo post!
É assustadora a forma de pensar de algumas pessoas. Perante situações que demonstram comportamentos tão insustentáveis (tanto consumismo, tanto consumo de recursos, tanta produção de desperdícios e principalmente maneiras de estar que desprezam tanto o ambeinte), são cada vez mais e mais as vezes que ultimamente comento com a minha namorada: “Este mundo está perdido…”
Sinceramente, assusta-me imenso ter consciência que existem imensos “Don Broudreaux”.
Obrigado pela amável referência. E claro, tens toda a razão. O Don é mesmo um bronco. Nem sequer passou da quarta classe.
Nada como insultar o gajo para o deixar de rastos. Eu já nem tenho resposta.
Boa noite e agora retiro-me que amanhã vou para fora aumentar a pegada ecológica – aí está a prova do meu fundamentalismo, ando de avião.
Caro Pedro, existem muitos Don Broudreaux, a promover activamente o destruir. Muitas vezes, porque no nosso círculo de amigos ou familiares existe alguma consciência ambiental, julgamos que não. Ou nem é consciência ambiental, é apenas viver a vida de todos os dias, sem grandes preocupações, mas também não destruindo por destruir.
Caro JCD, já sei que não tem resposta. No Blasfémias a vocação é mais para “o lixo dos comentários”, nas palavras do Pacheco Pereira, não para a discussão com pés e cabeça. E escusa de vir com a conversa que a culpa é dos comentadores, porque quando querem também os eliminam.
É bronco, não há dúvida. Mas eu uso a expressão mais em jeito de homenagem à sabedoria do Alberto João Jardim, do que insulto. E dá sempre jeito para não se responder. Pega-se na palavra “bronco” e pronto, fica-se logo sem resposta.
Não o tinha por fundamentalista caro JCD. Andar de avião não é prova de nada. Não há ambientalista nenhum que troque andar de avião por “amanhãs que cantam”. A prova é o link miserável que deixou lá no seu blogue. A prova está nos detalhes.
Com tanto agradecimento a tanta coisa má horrivel e maldosa feita pelo homem (capitalista claro) a novas Ordens Religiosas (anti-consumistas) de espada em riste lá vão tentando cortar as cabeças destes infiéis, ignorantes aque o reino dos céus (verde) estará sempre vedado.
Entendeu tudo caro OLP. Vê-se que leu com atenção. Dá gosto ter leitores assim.
Se não confundisse este blogues com outros que costuma frequentar, seria perfeito.
“Entendeu tudo caro OLP. Vê-se que leu com atenção. Dá gosto ter leitores assim.
Se não confundisse este blogues com outros que costuma frequentar, seria perfeito.
Ahahahahaha!
[…] Já tinha linkado para esta conferência há muito tempo (em 2009) como parte da resposta a um texto no Blasfémias. Está actual. Aliás, cada dia que passa, há mais plástico. E mais plástico no mar. […]