O descobridor do centro da Terra


Na quarta, quando cheguei para ficar dois dias, já a tapada estava bastante queimada e o Cláudio anda por lá com um arzinho mortificado à espera da bronca. Como contei até um milhão e seiscentos mil, a coisa passou e ele lá ficou mais feliz.

Quase à noite, enquanto plantavamos Cedros-do-atlas, ele mandou duas sacholadas valentes num tubo (mais um) que atravessa o terreno e basicamente rebentou-o. Tratava-se exactamente do tubo do avô dele, que abastece de água a casa. De forma directa, sem depósito. Se abrirem a torneira, sai água; se não usarem, é despejada nos campos. Assim mesmo, sem qualquer armazenamento. Ou seja, ficaram sem água.
É outra das cenas desconcertantes. Não conheço ninguém que tenha água à porta, como para mim seria natural num local com tanta abundância. Toda a água tem de vir literalmente do “cú de judas”, em quilómetros de tubo que ninguém sabe onde anda, atravessando tudo o que é propriedade. Que eu saiba, na nossa temos três e dois já os rebentamos. De lei, são 80cm de profundidade, aqui é mais na casa dos 20-30cm.
Pessoalmente, mais depressa fazia um poço. Qual é o sentido de transportar água de um lameiro perdido no meio do monte, a vários quilómetros de distância? Aliás, da água que cai nos tanques e que também vem de um disparate de distância, pelo meio de silvados intermináveis, já decidi que um dia que pare de cair (sem ser pela divina intervenção do Sr. Cristóvão), prefiro fazer um furo ou bombar a que temos dentro da propriedade. Não vamos andar à cata de um tubo com quilómetros e que ninguém sabe onde está. Aliás, a situação é tão ridícula ao ponto de haver um tubo duplo, porque numa ocasião o Sr. Cristóvão não encontrou o tubo e mandou enterrar outro!
No dia seguinte, fui comprar uma união de aperto rápido para fazermos a reparação. Não que o tivesse que fazer. Quando cheguei já andava o Cláudio às voltas com o tubo e precisava de ajuda. Com jeitinho lá foi a manhã. Ainda plantamos umas árvores e resolvi meter a água do ribeiro para dentro do terreno. De tarde até correu bem. Resolvi ficar mais um dia. É o costume. Não me apetece ir, depois de lá estar não me apetece regressar. E o trabalho por cá a acumular. Mas fiquei mesmo.
Quinta-feira, chego e Cláudio zero. Fiquei logo avariado. Então expliquei-lhe a minha falta de tempo actual e o tipo não aparece? Telefonei-lhe e apareceu calmamente depois das onze. De tarde, eram três horas quando regressou. A arrastar-se. A irritar-me solenemente. Que mosca morta. Às quatro já se estava a ir embora. Doente ao que consta. Não tinha energia. Bem, disso não tinha eu dúvida nenhuma, o rapaz metia dó a trabalhar com o maior fastio do Mundo.
Para mim, a doença dele chama-se trabalho. É uma chatice, ter que trabalhar para viver. Três dias seguidos foi demais. É uma doença contagiosa. Afecta vários milhões de portugueses, que depois exigem isto e aquilo; e mais alguma coisa. Estive aqui a olhar para os meus registos e o máximo que o Cláudio lá trabalhou foram 11 dias num mês. A média, será de seis ou sete dias por mês. O resto do tempo faz rigorosamente nada. Pouco ajuda o avô (se calhar aqui a questão é mais complexa) e praticamente trabalha em exclusivo para mim. O que ele pensa do futuro, os seus desígnios, têm se revelado para mim insondáveis. Contará ser sustentado pelo estado? É um absurdo. Tento motivá-lo, acompanhá-lo, tratá-lo como amigo… Mas é frustrante.
Um destes dias, virou-se para mim e perguntou-me se conhecia o Júlio Verne, “o descobridor do centro da Terra”. Conversamos um bocado sobre o assunto, sobre A Viagem ao Centro da Terra, Volta ao Mundo em 80 Dias, Da Terra à Lua e 20.000 Léguas Submarinas. Volta e meia, há uma espécie de intervalo na abissal diferença cultural que nos separa e conversamos de diversos assuntos. Tenho pena que não tenha tido as oportunidades de aprender que todas as crianças merecem. Temo que agora já comece a ser algo tarde demais.
Fiquei por lá até cair para o lado. Fiz o que pude, que foi praticamente tudo que tinha planeado. Ficaram dois castanheiros por plantar. É assim. No primeiro dia depois de bastante tempo sem ir, é um aquecimento. No segundo dia, trabalha-se a sério. No fim do terceiro, confesso que não aguentaria o quarto. Pelo menos ao ritmo que andei.

Na fotografia: Parte da leira da Fonte do Cavalo. A água que corre é a da nascente, mais a do barroco que viramos para dentro do terreno (ou seja, o barroco vai seco para baixo). Note-se que apesar de ser um local húmido em permanência, a erva não nasce e está em grande parte castanha do frio intenso que se fez sentir. Vê-se um pequeno castanheiro e a seguir são nogueiras. Também tem uns Cedros-do-atlas e Cedros-de-itália lá para o fundo. Na outra metade está com castanheiros.

A tocar no iTunes: Like Statues in the Garden of Dreaming do álbum “Dark Age of Reason” Arcana (Classificação: 4)

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