Do Excesso ao Vazio

Neste texto, a propósito de “Da perda da curadoria humana do conhecimento” de Daniel Carrapa, reflito sobre a ascensão e queda dos blogues, apontando o excesso de informação, a degradação dos espaços de debate e a substituição progressiva da escrita pessoal pelas redes sociais e agora pela inteligência artificial. Critico a homogeneização cultural, a manipulação mediática e a perda de memória na Internet, que até considero benéfica, já que quase tudo é irrelevante e rapidamente substituído. Lamento a ausência de vozes pessoais autênticas que antes encontrava nos blogues e descrevo uma sociedade em colapso, dominada por algoritmos, guerras manipuladas, consumismo desmiolado e desinformação generalizada. No fim, concluí que pouco importa se os textos são escritos por humanos ou por IA, pois a mentira e o controlo já dominavam tudo, muito antes desta tecnologia.
(Resumo quase todo gerado por IA)

Há muito que se poderia dizer sobre a ascensão e queda dos blogues, mas para quê? Alguém lê?
Uma das questões que me ocorre algumas vezes é o que terá acontecido primeiro: as pessoas deixaram de visitar e de ler, ou foram os autores que deixaram simplesmente de escrever? O Daniel Carrapa (A Barriga de Um Arquitecto) escreveu um texto — Da perda da curadoria humana do conhecimento — num formato longo, que já não se usa porque já ninguém lê, e que aproveito para comentar (um hábito que nunca se enraizou na nossa blogosfera).

Eu tenho aquilo que considero um valor enraizado, que me tem servido a vida inteira e que se traduz simplesmente por: «aquilo que é demais, é erro» (ou noutra versão, «é moléstia»). Francamente, quando os blogues começaram e, mais tarde, quando iniciei este (ao que parece, há mais de 20 anos), não esperava que a internet viesse a ser «demais». Mas a verdade é que, no seu auge, os próprios blogues já o eram. Mesmo alguém como eu, que tentava ler tudo e publicava ligações para todo o lado (um hábito que, no Portugal contemporâneo sempre diminuto, nunca pegou), não conseguia acompanhar tudo o que se fazia e escrevia. Por essa altura, as caixas de comentários começaram a ser locais mal frequentados; até eu recebia aqui insultos diários (principalmente — e por algum motivo que surgia por si — de brasileiros). O spam era uma praga e, no geral, o prazer de ter um blogue foi sendo, primeiro gradualmente e depois subitamente, substituído por uma preocupação constante e por trabalho frequente. E as redes sociais ainda mal existiam — e essas, só por si, dariam um texto autónomo.

Nessa altura já eu não acreditava no blogue como plataforma de debate público. Por algum motivo, a comunidade — pelo menos a que conheço melhor, que é a «internacional» (os 12% da humanidade de onde de facto saíram os maiores avanços civilizacionais, mas que ainda hoje insistem em dizer aos outros como viver) — agrega-se sempre em torno de meia dúzia de ideias e faz toda a mesma coisa. Ouvem as mesmas músicas, vêem os mesmos filmes e séries, lêem os mesmos livros, visitam os mesmos sítios (e sites)… Como facilmente imaginarão, também liam todos os mesmos blogues. O Top 100 de qualquer coisa representa mais do que todos os outros juntos. Os mecanismos de controlo evoluíram e hoje são máquinas sofisticadas que não deixam passar nada — e o que passa é também por uma razão. Aquilo a que o Daniel chama a «nova paisagem corporativa da comunicação global». Não é assim tão nova, mas é muito raro que surja um verdadeiro debate público de forma espontânea.

A humanidade evoluiu para esquecer, e esquecemos para poder viver. Nesse sentido, a perda de memória da Internet é positiva. Por esse motivo biológico, e porque todos os que escreveram algo num blogue mais cedo ou mais tarde se arrependeram. Ou já não se identificam com nada do que disseram há 20 anos. Ou porque há memórias dolorosas, sonhos por realizar, pessoas que desapareceram das nossas vidas. Tanta coisa. Mas onde a perda de memória se torna realmente irrelevante é na quantidade. Que importa? A seguir a este dia vem outro, com milhares de milhões de novidades. A seguir a este minuto, vem outro. E num minuto — dizem — cabem quatro filmes, entre os milhões que acabaram de ser publicados. Que interesse poderá isto ter? Que parte edificante me escapa de minuto a minuto? Não percebo. Graças a Deus (ou ao algoritmo) que não há memória, porque não há nada a preservar.

Do que sinto falta é de pessoas que nunca conheci, mas que escreviam bem, publicavam fotografias e mostravam um pouco do seu quotidiano, com o qual eu me identificava. Algumas cheguei a conhecer, virtualmente ou apenas uma vez na vida; eram daqui e dali, mas nunca criei laços para além do blogue. Houve, contudo, essa ilusão, durante muitos anos. Essas pessoas tornaram-se raras, cada vez mais fechadas em si mesmas, cada uma no seu feed, ou simplesmente regressadas à vida habitual. Ao morrerem os blogues, os seus autores desapareceram para mim — e pergunto-me se terão realmente existido, ou se não terá sido tudo uma ilusão.

Agora vem a chamada inteligência artificial (bom nome, embora não corresponda à realidadede presente) e, dos exemplos que já vi, pergunto-me por que razão haveria um humano de voltar a escrever o que quer que fosse na Internet (escrever para papel é diferente; é o meio que tem provas dadas, e isso daria outro texto). O que esta tecnologia já demonstrou — e note-se que se trata ainda da sua pior versão, pois em cada ano se tornará melhor — vai muito para além do que eu imaginava possível no meu tempo, embora o tivesse visto muitas vezes na ficção científica. (Sobre a inteligência artificial também daria outro texto.) Num plano pessoal, já me resolveu problemas que um humano, se eu o encontrasse, demoraria semanas ou meses a resolver (não a pensar ou trabalhar, mas a adiar, a empurrar com a barriga e a chatear-me). Só tenho pena de não resolver questões de pichelaria, electricidade e construção civil em geral.

O colapso da sociedade, para mim, é indiferente se acontece porque a humanidade deixou de acreditar em algo superior e, por isso, acredita em literalmente tudo o que lhe põem à frente, ou se é porque a IA vai tomar conta. Se a sociedade fosse saudável, o problema do controlo, do fluxo de informação, do algoritmo e, por fim, da inteligência artificial, não se colocaria. Uma sociedade que permite fingir que um homem é uma mulher, que demonstra que os homens dão não só os melhores homens, mas também as melhores mulheres (e Portugal, na corrida para o fundo há 50 anos, faz sempre questão de ir à frente). Uma sociedade que, a propósito de um vírus, permite fazer gato-sapato de valores e princípios tão elevados no dia anterior (Portugal, sempre o melhor aluno). Uma sociedade que provoca e promove uma guerra num país europeu, com uma barragem de desinformação verdadeiramente extraordinária (e onde Portugal, mais uma vez, vai na dianteira, onde os portugueses «odeiam» os russos só um pouco menos que os polacos), defendendo interesses que não são os nossos. Uma sociedade que assiste impávida e serena a um genocídio promovido pelos mesmos que promoveram a guerra na Ucrânia e, pelo caminho, a destruição do Iraque, do Líbano, da Líbia, da Síria e do que mais vier — talvez a Venezuela, em breve. Uma sociedade que exige uma destruição ambiental como nunca se viu, a troco do consumismo mais desmiolado, de viagens, gadgets e quinquilharia, batendo-se todos os recordes de emissões de CO₂ em 2024, que correspondem sempre a recordes de temperatura (não falta quem continue a acreditar em más coincidências).

Portanto, que me interessa se as notícias são escritas com recurso a IA? São assim tão diferentes as que se publicam nos chamados «meios de comunicação social»? Quem paga é quem manda, e toda a gente tem de pôr comida na mesa (ou viajar, ou comprar gadgets, ou quinquilharia). Toda a desinformação das últimas décadas não recorreu a IA, e no entanto cá estamos. Quem assistiu à apresentação das «armas de destruição em massa» iraquianas por Colin Powell na ONU, sabe que foi nesse momento que se entrou oficialmente na pós-verdade. Quem critica o presidente Trump sem nunca ter aberto a boca antes — para esse momento, para Biden, Obama e não só — não vem com desejos de verdade, nem com clamores de justiça, nem com nada que valha a pena ouvir. Desde então, o melhor que se pode fazer é ter a televisão desligada. E a Internet? Redes sociais, feeds — zero. O resto, com parcimónia, olhos abertos e pouco mais. O essencial é que cada um é livre de fazer aquilo que quer (excepto no Reino Unido e em cada vez mais países europeus, mas isso também daria outro texto) e em última análise, foi essa redução ao indivíduo, ao individualismo, que nos trouxe até aqui.

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