Amplificador de pensamentos


Hoje quando cheguei, já lá andavam o Sr. Fausto e o cunhado, o Sr. Alberto, que ainda não conhecia. É o dono do pedaço de terreno que está no meio do nosso, junto ao ribeiro. Interessa-nos ficar com isso, um dia mais tarde.

O Sr. Fausto andava às voltas com a levada, enquanto o Sr. Alberto me contava como conhece aquilo tudo, foi para ali com seis anos. Antes de ir para a escola tinha de ir virar as águas e no regresso idem, fosse dia ou noite. De seguida explica-me o direito aos caminhos, uns por um lado, outros por outro; mas já há quem faça caminho daqui e dali; blá blá. Só foi pena ninguém nos ter falado desses caminhos todos, antes de comprarmos, nomeadamente os vendedores. Esqueceram-se por certo.
Entretanto lá fui dizendo que achava que andava ali água a mais. A resposta, do mais puro melodrama, com gesticulação à mistura, “a água é o sangue da Terra!”. Está visto que tenho carência de argumentos.
A Susana, que ia lá ter com os pais mais tarde, telefonou a dizer que deu um jeito nas costas e já não ia. Mais os pais sim, com a Luisa e uma tia. O Sr. Alberto, que ouviu a conversa, sugeriu logo um “endireita” da Maia, muito bom, ele próprio já lá tinha ido. Efectivamente, ando com falta de argumentos para dizer o que quer que seja.
Fui à minha vida, a manhã era só conversa. Nada surpreendentemente, o Cláudio não apareceu e eu tinha muito que fazer. Cortei uns cinco castanheiros com cancro, podei sete macieiras e duas pereiras, cortei quatro estacas de figueira para reprodução — o ano passado tinha feito o mesmo, mas o Cláudio deixou secar as jovens figueiras, desta vez trouxe para casa num vaso –, apanhei umas castanhas…
Este ano ouvi falar muito da castanha. TV, rádio e jornais, todos falaram da castanha e do seu potencial. Também falaram do cancro e é unânime (também nos livros) que a cura é o abate e queima no local (não há cura), mas há quem pense que existem outros métodos. Vou experimentar, embora não seja muito fácil andar em cima de árvores tão dispersas. Há alguns castanheiros que se forem para abater, vai custar muito.
Entretanto, chegaram os sogros e a Luisa e reparo que perdi o telemóvel. Andei montes de tempo com o do meu sogro a “telefonar” para o meu para tentar ouvi-lo, mas nada. Fui a todos os sítios onde tinha estado. Mais um prejuízo. Na levada, a enxurrada era descomunal, a água entrava no palheiro aos montes e saía por um buraco para o efeito. Fui dizer ao Sr. Fausto que assim não podia ser. Ainda ia afundar o rego e não sei que mais… Realmente, quando voltei mais tarde, já não havia água a transbordar, mas continuava a ir parar ao palheiro, via buracos subterrâneos. É preciso uma paciência brutal.
Depois do almoço apareceu o Sr. Abel. Estive a explicar como queria a horta. Amanhã iria colocar as couves lombardas e umas nabiças. As vacas também iam. Ora aí está uma situação que queria evitar: não estar lá para ver. Infelizmente, não posso passar lá a vida e o ideal era ter alguém de confiança, digamos, o Cláudio, mas com esse já não conto. A ver se o Sr. Abel se porta à altura.
A família voltou do almoço. Queriam diospiros. Pedi ao Sr. Abel, se me ajudava. Não havia um único maduro. Da primeira árvore nem maduro, nem o contrário, nada. Roubaram-nos os diospiros. Provavelmente, com a nossa própria escada. É uma situação, para dizer o mínimo, muito aborrecida. Coincidindo com o desaparecimento do Cláudio, começam a passar-se coisas desagradáveis, imagino eu, porque o terreno está sem ninguém constantemente.
Fiquei sozinho outra vez. Comecei a queimar o que sobrou de limpar as leiras para os citrinos. Cortei lenha também. Às 18h já era noite cerrada. É difícil descrever por palavras o que sinto lá de noite, sozinho, de volta da fogueira, o céu cheio de estrelas, o frio… É uma espécie de amplificador de pensamentos. Penso em tanta coisa e com tanta intensidade que nem sei… Pura e simplesmente não me dá vontade de vir embora. Também não deixa de ser verdade que de manhã também não tenho vontade de ir.
No regresso parei na casa do Sr. Abel que me deixou mais pencas e uma garrafa de bagaço. O filho (do meio), diz-me que se precisar que ele vá aos sábados para telefonar. E alguns dias na semana também, porque anda nas obras e nem sempre o vão buscar a casa.
Na auto-estrada um acidente. 45 minutos para andar cinco quilómetros. Ainda há quem me pergunte porque hei-de querer mudar-me para o interior.

A tocar no iTunes: Head Hang Low do álbum “Floored Genius 2 — Best of the BBC Sessions 1983-1991” Julian Cope (Classificação: 5)

Uma resposta para“Amplificador de pensamentos”

  1. fernando

    É com grande interesse que diariamente vou tentando seguir a vossa página. Pois ao lê-la e vendo fotografias tanto dos lugares como das gentes vou recordando um lugar especial que tenho no coração. Por isso vou lançar um desafio que era o de irem dando novidades do que se passa aí na zona desde a Vila de Cinfães até ao fim do concelho de Tendais com especial ênfase à zona envolvente aí ao Sargaçal que é a de Vila de Muros, Avitoure, Valverde e Enxidrô pois por vezes vão se reconstruindo e até criando coisas que quem está ai não liga, mas para quem está longe sabe como se fosse o néctar dos deuses.
    Além que recordar não só enriquece a alma mas também faz com que se deseje regressar o mais depressa possível.

  2. jrf

    De certo por minha culpa, muita gente pensa que vivemos no Sargaçal. Não é o caso. Adquirimos os terrenos em Julho de 2003, que se resumiam a mato, árvores, vinha, ruína e dois palheiros. No presente, há menos mato e mais árvores, mas faltam todas as condições para viver ou passar lá uma temporada. Há planos para uma e/ou outra coisa, mas demora tudo, por demasiadas razões.
    Entre idas e vindas, trabalho, crianças e o que há a fazer no terreno, sobram poucas ou nenhumas oportunidades para explorar as proximidades (e também, a Serra de Montemuro, Gralheira, Lamego…). Esperamos que o tempo venha, com o tempo, mas para já não é possível.
    Quem sabe, um dia destes não possa visitar a região e acabar com essas saudades?

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