O coelho

O Henrique Pereira dos Santos no seu texto Morte e Extinção no blogue Ambio, elabora uma série de pontos que podem ser resumidos na sua própria frase em “a caça é favorável à conservação do coelho”. Por muito que me esforce, não consigo entender como é que após a introdução da Mixomatose nos anos 50 (que segundo ele reduziu a população de coelho a 5-10%) e posteriormente a Doença Hemorrágica Vírica nos anos 80, a população do coelho possa beneficiar ainda com a pressão da caça.

Se entendo o raciocínio, é tudo eminentemente prático: é favorável, dentro de algumas reservas de caça, porque os caçadores eliminam os predadores (estes métodos têm pouco ou nenhum impacto positivo nas populações de coelho) e eventualmente vacinam os coelhos — ou seja, as associações de caça são as únicas entidades que em Portugal fazem de facto alguma coisa pelo coelho. Isto em detrimento de uma gestão não interventiva, onde os coelhos continuam a morrer sem vacinas e continuam a ser perseguidos pelos seus predadores naturais e pelos caçadores legais ou furtivos, gestão que também custa dinheiro, que pelos vistos o Estado não tem.

Como prémio, espécies praticamente extintas no nosso país (agora aprendo que o que importa é a população ibérica, mas num caso ou noutros falamos de dezenas a no máximo pouquíssimas centenas de exemplares), reaparecem graças a essa milagrosa gestão do coelho. E milagre, por milagre, nem são abatidas pelos tais gestores — Lince (estou para ver), Águia-imperial, Águia-de-Bonelli…

Por azar nítido, já aqui tinha referido um macho de Águia-imperial abatido a tiro numa zona de protecção especial, dentro de uma zona de caça associativa. No Ambio, tanto o autor do texto como o Gonçalo Rosa, outro colaborador do blogue, fizeram uma barragem onde pretendiam fazer crer aos incautos que eu confundia morte de um indivíduo com a conservação de uma população. Pois eu apenas referi um indivíduo, um macho de Águia-imperial liquidado por caçadores, apresentado no jornal Público como fazendo parte do único casal a nidificar em Portugal (facto que os conservacionistas do Ambio corrigiram para quatro casais). Se isto não é uma situação limite, não sei o que é uma situação limite. Deve ser quando só restarem uns ovos e alguém por engano fizer uma omelete.

Não encontrei uns mencionados estudos que indicam o aumento da população de coelho nas reservas de caça, nem evidências que isso seja uma generalidade. E muito menos estudos que façam o controle e o contraponto dos anteriores. Ou seja, conclui-se por um aumento da população do coelho sob gestão dos caçadores, mas que eu saiba, não há nenhum estudo sobre a evolução da população sem essa gestão. Um estudo desses é praticamente impossível de realizar em Portugal, porque os caçadores controlam de facto praticamente todo o nosso território naturalizado e não vão abrir mão de, digamos, 100.000 hectares para ser efectuado um estudo alargado e capaz sobre as virtudes da não intervenção, para o coelho e para o ecossistema.

Em Espanha, onde a mentalidade da caça é muito parecida — mas onde algo parece funcionar melhor, tendo em conta as recentes migrações de espécies já virtualmente extintas no nosso país —, o coelho também é uma preocupação. Em todos os sites que vi estampada essa preocupação, são apontadas quatro razões para o declínio: a Mixomatose, a Doença Hemorrágica Vírica, a perda de habitat e (surpresa) a caça. Por exemplo na Ambienta: La revista del Ministerio de Medio Ambiente (PDF). É um artigo interessante que de facto dá algum crédito às associações de caçadores e indica após as doenças um decréscimo de 60% da população.
Como a internet é grande, num outro artigo fiquei a saber que o nome Espanha tem origem no fenício e os romanos deram o significado a Hispania “terra abundante em coelhos” (Wikipedia).

Mas dizia, é muito interessante ler sobre as pragas localizadas de coelhos em Espanha, que arruinam os agricultores regularmente. Primeiro, onde os coelhos conseguem vencer a doença, reproduzem-se de facto como coelhos. Segundo, os predadores pura e simplesmente não existem, designadamente raposas extirpadas da terra pelos caçadores e pelos próprios agricultores. Terceiro, todos os métodos ilegais de caça, nestes casos aparecem por obra e graça do Espírito Santo, designadamente Furões, prontos a entrar legalmente ao serviço.

Mas o que de facto reforça a minha hipótese de que a não caça é mais favorável ao coelho, é que por um lado estas pragas acontecem em zonas com a caça inexistente ou condicionada (infelizmente perdi aqui um link importante e não o consegui ainda voltar a encontrar). Por outro lado a linha do AVE (comboio de alta velocidade espanhol), sendo uma zona de caça interdita, tornou-se de facto numa grande maternidade para o coelho, que se expande dali para os terrenos agrícolas.

Ou seja, se a preocupação fosse de facto o coelho e os debilitados predadores que dele dependem, a caça ao coelho já teria sido suspensa há duas ou três décadas. Mas, como aos caçadores não se pode dizer que não, vai-se fazendo de conta que são os grande agentes da conservação em Portugal.
Este tipo de raciocínio contraditório tornou-se muito comum. Ainda recentemente se admitiu mais caça à baleia em troco de mais medidas de conservação (Público).
A minha conclusão é que se os projectos de conservação passam pelos caçadores é porque nem o Estado, nem conservacionistas, nem ecologistas, nem investigadores, têm grande escolha. E tenta-se criar esta ideia de colaboração e de grande aliança, onde na verdade não há nada a não ser business as usual com umas contrapartidas, umas migalhas, de conservação.

E continuamos com populações de Lince só em cativeiro e vindas recentemente de Espanha, como um limpar de consciência governamental pelos irreversíveis danos que têm causado no ambiente, Águias-imperiais contam-se pelos dedos de uma mão, Águias-de-bonelli pelos dedos de poucas mãos e assim se conserva. Bem-aventurados os conservacionistas satisfeitos com esta situação.

Uma última nota: o Henrique Pereira dos Santos fez recentemente uma curiosa declaração de interesses, num post de divulgação com toda a pertinência para a temática do blogue Ambio. Eu interpreto-a como um aviso à navegação a propósito deste meu texto, do qual mantenho tudo o que escrevi. É uma declaração de interesses que não aquece nem arrefece. Pessoalmente, considerava — literalmente —, mais interessante, uma declaração de interesses nos posts sobre a caça. A minha fica já aqui: Gostava que no meu país a não caça fosse uma realidade, que se cumprisse a lei, que existisse civismo e verdadeiros valores ambientais. Fora isso não tenho interesse nenhum.

Uma resposta para“O coelho”

  1. Lowlander

    Bom post caro JRF.
    Nesta questao, que acho interessante mas em que tenho relutancia em comentar porque nao tenho conhecimento tecnico adequado, tenho tendencia a concordar consigo.
    Na minha opiniao o Henrique tem um bocado o vicio de acreditar na magia “da mao invisivel” para nos resolver todas as maleitas quando o que eu observio na realidade e que quase todas os feitos humanos que nos maravilham e tornam a vida confortavel e decente sao resultado da intervencao Estatal.
    Os pouquissimos avancos que temos teido em termos ambientais por esse mundo fora so foram possiveis devido a intervencao estatal CONTRA os privados.
    E por isso que observo com muita desconfianca estas parcerias com grupo privado como as coutadas de caca, especialmente quando a balanca de poder tende tao tendencialmente para o lado deles.
    E se e verdade que consigo vislumbrar entre a argumentacao do henrique e outros situacoes em que talvez esta actividade, se fortemente regulamentada e fiscalizada pode ter efeitos positivos no territorio, a verdade e que uma ma lei (por ser mal redigida e/ou insuficientemente fiscalizada) as vezes e pior que uma ma lei, assim sendo, se Portugal e incapaz de por empratica boas praticas no sector provavelmente seria melhor, no computo geral banir. Gosto de pensar esta questao em termos de um veterinario tem o potencial de fazer um excelente trabalho, mas dai nao decorre que todos podemos ou devemos ser veterinarios, assim sendo, no caso das pessoas que nao podem ser veterinarios mais vale vedar-lhes a actividade.
    Acho que no essencial o JRF tem razao, e uma “parceria” muito sui generis esta em que uma das partes tem tudo o que quer e a outra fica com os restos…

    So uma nota quanto a Hispania e o coelho, ja sabia da origem etimologica dessa palavra, alias, a analise genetica da especie indica que e uma especie nativa da Peninsula Iberica, foi aqui que “nasceu”. Quanto aos Fenicios, deram nome a muitas coisas, incluindo Lisboa.

  2. José Rui Fernandes

    Eu não tenho conhecimentos técnicos, utilizei a observação directa, textos, lógica e algum bom senso, ou senso comum.
    Eu, acredito na iniciativa privada a 100% (quer dizer, também considero o capitalismo fatalmente defeituoso, pois tudo tende para o monopólio, mesmo em sociedades altamente competitivas), mas não na mão invisível que a regula. Tende para a auto-regulação, conflito de interesses e a natureza humana faz o resto. Acho que exagera no méritos do estado. Sim, eu considero que o Estado tem de estar presente, não de forma discreta mas forte e firme. Autoritário até em muitos casos. Mas apenas nas linhas gerais.
    Por exemplo se a sociedade fossem estradas, o Estado ideal para mim diria por onde passariam de modo a beneficiar o máximo de pessoas e prejudicar o mínimo. Não as construía, se bem que admito estado até aí. Mas, carros, motas, bicicletas, bombas de combustível, parques e tudo o resto, o Estado não se metia que não fosse para recolher impostos e regular o que precisa de ser regulado.
    Dito isto, o Estado de hoje é uma aberração que só existe para chatear. O que faz não está a resultar, é mal feito. Foi tomado de assalto por estes grupos, de caçadores a construtores civis e tudo o mais. O dinheiro não é nem nunca será suficiente, quanto mais tiver mais gastará e em última análise vai-nos levar a todos à ruína.
    É verdade que alguma defesa ambiental é o Estado contra privados, mas há também muitos grupos privados contra o Estado designadamente nos EUA que tem tradição de participação cívica. Decerto que os defensores da mão invisível arranjam uma dúzia de exemplos de iniciativas privadas que beneficiam o ambiente, mas com estas dos caçadores, a EDP, o BES… para exemplos nacionais, não me convencem. O valor principal é o interesse da empresa, a biodiversidade é um subproduto.
    Mas já me apercebi, designadamente no Ambio, que os conservacionistas sentem-se satisfeitinhos com esses subprodutos. São “resultados muito positivos”. Eu digo, que se me derem a escolher entre isso e zero, ok. Mas nunca admitirei estar satisfeito, ou que esse deve ser o caminho da conservação.
    Portugal precisava de uma forte fundação com objectivos ambientais, com uns largos milhões de euros de património, de modo a assegurar a sua independência e integridade. Como está, o próprio Estado, através do ministério da destruição do ambiente, é o primeiro a comprometer-se. Só serve para pareceres técnicos duvidosos para justificar o cimento aos olhos de Bruxelas.
    Sim, o HPS tem frisado que a caça é um instrumento que pode ser bem ou mal utilizado. Mas isso é uma obviosidade. Na prática, esta crise deve ter feito mais pela biodiversidade que todas as coutadas juntas. Dos 300.000 caçadores legalizados, apenas metade pagaram a licença em 2009 — não quer dizer que não tenham passado à ilegalidade, mas é um começo.

  3. José Rui Fernandes

    Eu sabia que o coelho era originário da península, mas não que o próprio nome Hispania significava que era terra cheia de coelhos. Estes detalhes são interessante. Parece que foi tudo há tanto tempo e na verdade foi ontem que andaram por aqui os romanos. Que é feito deles e do império? Que será feito desta miséria daqui a 2.000 anos?

  4. José Rui Fernandes

    Eu vou ver isso. Mesmo assim não vai inviabilizar a hipótese de zonas geridas sem caça serem mais vantajosas para a biodiversidade. Isso é que seria algo surpreendente para mim.

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