O dilema social

The Maltese Falcon

The Maltese Falcon (1941), realizado por John Huston.

Sou frequentemente assaltado pelo dilema social. Desprezo o Facebook e no entanto lá estou, com intuitos profissionais, mas decidido a mostrar que há ali uma pessoa. Todo o jargão utilizado dá arrepios a qualquer um que ainda tenha algum módico de rigor no significado das palavras… amigo, partilhar, gostar, ir, ir talvez.
Amigo é o Mundo inteiro até ao limite de 5.000 se o deixarmos;… um prodígio.
Partilhar é uma alegria, huh… partilhada;… a maior parte das vezes com momentos e vidas de outros, raramente ou nunca o que é nosso;… entretanto descobrimos que temos demasiados amigos.
Gostamos de tudo, ou melhor de nada, porque hoje também já não se clica em gosto por dá cá aquela palha;… já nem é preciso gastar 120 caracteres a comentar, basta gostar. E como nunca, nunca se gosta, gosta-se mesmo do que não se gosta. Gosta-se do caso de alguém não ter gostado e partilhado e nós não termos gostado;… mas gostamos da partilha de mais uma injustiça mundial que quase ninguém gostou.
Ir? É virtual. Não quer dizer que se vá, nem sequer que se tenha intenção de ir;… vamos, mas como apoio moral, por um amigo fazemos o que é preciso.
Talvez ir? É um não definitivo. Não vamos de certeza, mas não se diz isso a um amigo;… terá de servir um talvez vá.
O dilema não é este. No Facebook não há dilema nenhum. Mas tem uma vantagem, toda a gente à partida lhe pode aceder. A desvantagem é que nunca se sabe muito bem com quem se está a partilhar o quê. Desconfio que a maior partilha acaba por ser com os anunciantes, como produto transacionável que já somos.
O dilema surge com apps como a recente Sunlit. Apesar de se poder publicar as histórias fotográficas na internet, foi feita para pequenos grupos e esse já é um conceito interessante. Mas é um problema.
Vamos dizer que tenho 12 grandes amigos (um verdadeiro exagero, não tenho) e 12 familiares chegados, com os quais quero partilhar com eles as minhas histórias. Desses só quatro têm iPhone, um dos quais uma versão desactualizada que não funciona com esta app. Lá se foi o grande grupo.
Se todos tivessem iPhone, acho duvidoso que a todos interessasse da mesma forma o que eu tenho para dizer. Além disso, acontece frequentemente há muito tempo eu ter amigos de proveniências diferentes que não só não se conhecem entre si, como têm interesses completamente distintos. Quando estou com uns ou com outros a conversa flui sempre de uma forma completamente diferente. Costumo dizer que falo melhor com uma pessoa de cada vez e é verdade.
A app Glassboard sofre do mesmo problema, mas entretanto juntaram o sistema Android e então talvez oito amigos possam aceder. Mas recentemente juntaram uma webapp o que resolve o dilema (ou um dos dilemas, porque entretanto, acho que me perdi nesta socialização toda). Posso ter vários “boards” conforme os interesses dos amigos, pessoas que realmente conheço — vão aumentando com o número de novos utilizadores que arranjamos, o que pela natureza da app é um número necessariamente baixo, ou caímos no mesmo de sempre, daqui a pouco nem conhecemos a maior parte. Não tem definições de privacidade, porque tudo é privado (quem já andou pelas definições de privacidade do Facebook, tem de dar valor a isto). Uma outra questão que surge é quando o grupo é efémero demais nos seus interesses comuns. Digamos que vamos sair com amigos que vemos muito raramente, criamos um “board” para essa viagem, mas depois disso, pouco ou nada haverá a dizer. Como os “boards” são limitados, tenho dúvidas que seja a melhor forma de contactar amigos que não façam parte de um grupo de interesses coeso. Fora estas primeiras impressões, não tenho muito mais a dizer porque ainda não utilizei o suficiente.
Mas eis que surge um novo dilema… valerá a pena tudo isto? A resposta pode muito bem não me agradar.

Uma resposta para“O dilema social”

  1. Daniel Carrapa

    «Desconfio que a maior partilha acaba por ser com os anunciantes, como produto transacionável que já somos.»
    Bingo! [Tlim, tlim,tlim…]
    Não conheço as especificidades dessas apps. Sou pré-histórico, tenho um telemóvel Nokia baixa gama e recuso pagar mais de 100 euros por um telemóvel. Mais que pré-histórico, tresanda a coisa da era dos dinossauros.
    Mas o Facebook é um tema que me interessa sempre. Também lá estou e uso a minha “persona” digital FB como identidade para muitos websites espalhados na web. Um problema: no dia em que decidir “deletar-me” do FB, estarei a apagar a minha identidade e respectivo histórico em todos esses sites. Uma tragédia. Mas o FB, ele mesmo, uso pouco.
    A questão, como está na frase que escreves, é aquela mesma. O produto do FB não é o mural. O produto somos nós, a base de dados da “impressão digital” que deixamos por todo o lado e que as máquinas do FB vão registando pacientemente, sempre, mesmo quando não estamos lá, comentando (log-in com o facebook?) no Economist, no Guardian Online, no Gamespot, no Miudasgirasonline.com…
    O FB conhece-nos, mas está ainda a dar os primeiros passos na forma de comunicar connosco. Por agora, testa formas de target de publicidade embutida de coisas que, a partir dos nossos interesses, “provavelmente” gostaremos. Mas, com tempo, aprenderá a fazê-lo melhor, para mal dos nossos pecados.
    Há quem vaticine o fim do FB. Talvez. Eu, que o acho odiável, gostava de ver. Mas penso também que isto é apenas o começo. Ele ainda vai surpreender, apostar em mudanças de estilo, tentar tornar-se fixe. Já escrevia Shakespeare: “o diabo tem poder para assumir uma forma agradável”…

  2. José Rui

    Olá Daniel, obrigado pelo comentário :) .
    Eu tenho como certeza que praticamente todos os serviços online grátis vivem dos nossos dados e nesse sentido somos o produto.
    Mesmo os que não vivem têm como objectivo acumular milhões de utilizadores para depois serem vendidos “em pacote” a um dos quatro grandes (Google, Yahoo, Facebook ou Twitter) por alguns milhares de milhões. E esses vivem dos nossos dados. Eu vejo isso como um problema.
    Eu não vaticino o fim do Facebook antes de um ciclo natural do que nasce, desenvolve-se e morre… eventualmente morrerá, mas se calhar vamos nós todos primeiro.
    Esse problema do login via Facebook não tenho, felizmente evitei sempre essa comodidade… mas tenho no gmail, um mail de uma empresa que cada vez vejo com mais desconfiança. E utilizo para tudo que é login.
    Eu acho que ninguém tem a noção do que está a acontecer e das mudanças sociais profundas que aí vêm (veja-se recentemente o sms do governo para os manifestantes na Ucrânia), há muitos estudos mas a realidade está a andar muito mais depressa do que as conclusões dos estudos. Há também vários livros… o Admirável Mundo Novo, 1984… duas abordagens diferentes… ou então a Skynet do Terminator… no fim, quem vai mandar nisto tudo são as máquinas!

  3. Daniel Carrapa

    O Kottke escreveu umas coisas interessantes sobre o fim dos blogs: The blog is dead, long live the blog e R.I.P. The Blog, 1997-2013. E agora têm aparecido vários textos sobre o fim do Facebook. E há aqui aspectos interessantes.
    O Kottke não diz que a blogosfera vai acabar. O que ele diz é que o formato blog perdeu relevância, deixou de ser influente. Não quer dizer que não existem blogs muito visíveis, relevantes, influentes. Mas o formato, “cronológico invertido”, que se tornou referência em tudo o que é internet, está a deixar de ser a referência.
    O Facebook, o Twitter, agregadores noticiosos, privilegiam o “trending”, o relevante. E isto tem um efeito curioso. É que sujeita as pessoas à filtragem de informação através da imposição de um algorítmo que ninguém controla. O Veritasium tem um vídeo engraçado sobre isto: The Problem With Facebook.
    O exemplo do Facebook é excelente. Por “default”, o Facebook acciona a visualização por “relevante”. O utilizador pode alterar para ver as últimas entradas, em ordem cronológica invertida, acedendo a todos os “posts” dos seus amigos ou das páginas que subscreveu. Mas, e isto é que é engraçado, após novo login, o Facebook volta à opção default.
    Ou seja, privilegia e “força” a sua opção de visualização preferencial.
    Como tal, ficamos sujeitos à visualização por ordem de “relevante”. E o que é que é relevante para o Facebook. Um algoritmo cruza o número de gostos e partilhas e comentários de um post, e determina o valor daquele post.
    O resultado: o teu post no FB com uma análise séria e profunda sobre um livro ou um filme é soterrado por um post meu com gatos fofinhos. Ou com os escândalos da semana. E agora, o sistema de monetização do FB permite impregnar os murais de grupos de interesse com posts promocionais. Que, naturalmente, são valorizados preferencialmente pelo algoritmo.
    Esta dominância do “trending” nas páginas da internet é uma alteração profunda do acesso à informação. Valoriza o que é mais popular, mas ignora a unicidade daquilo que é especial.
    Claro que tudo isto é uma brincadeira comparado com o que de tenebroso vem por aí. Nos EUA existem empresas de consultoria especializadas em produzir perfis de candidatos de emprego a partir das suas marcas em redes sociais. Imagina que foste seleccionado para uma entrevista de emprego. Passaste a primeira fase. Mas agora, quando lá chegas, ainda não disseste nada e eles já sabem quem tu és. As tuas simpatias políticas, os teus hobbies, um perfil psicológico e emocional, até uma aferição de nível de inteligência.
    E tu estiveste a fornecer material para esse perfil, ao longo de anos e anos, voluntariamente, no FB, no Twitter, no teu blogue, por todo o lado.
    Eu, e provavelmente tu, sabemos isto, e apesar de utilizarmos estas plataformas, fazêmo-lo conscientemente. É uma opção, é uma escolha. Mas toda uma nova geração nasce com estas ferramentes e começa a construir a sua impressão digital desde adolescente, sem fazer a mais pequena ideia do que isto é. E este é apenas um exemplo.
    O Feynman contava uma história interessante, que lhe tinha sido transmitida num templo budista no Havai. Que a cada homem é dada a chave dos portões do céu. A mesma chave abre os portões do inferno.
    Acho que é mais ou menos isto…

  4. José Rui

    Eu conheço os textos do Kottke… a minha versão é que nada cresce para sempre, mais cedo ou mais tarde os blogues teriam tendência a decair e admito, perder influência. Mas vejo paralelos na música em vinil, é influente para quem gosta.
    No nosso caso, pelos vistos ainda por cá andamos… eu terei eternamente o sonho de ter um blogue ideal, com umas “features” bestiais, mas nos dias que correm, se alguém ler, já não é mau. Por exemplo, gostei bastante que comentasses e ainda para mais tão extensivamente (e sou culpado de também ter deixado de comentar em todo o lado, não sei exactamente porquê…).
    O formato “cronológico invertido” até nem é mau considerando o buraco negro que é o Facebook. A influência pode-se perder, mas eu tenho aqui textos que já foram em cinco anos, mais vistos que um artigo numa revista de grande circulação… porque o blogue para o bem e para o mal, perdura. E julgo que um bom texto hoje, tem boas hipóteses de o continuar a ser amanhã (depende do assunto, mas entende-se), uma boa fotografia é para sempre, algumas relações também se vão forjando e nem é mau. O mal, é que bons textos começam a ser uma raridade por aqui e por muitos sítios que visito. Os 120 caracteres têm muita força.
    Eu já tinha reparado no relevante do Facebook e que mudava (claro) só para voltar ao mesmo na próxima. E outra coisa que reparo é que na página Mundo Fantasma quanto mais fãs, menos vistos são os posts… como se me quisessem forçar a pagar (o que efectivamente faço, para saltar de 750-1.000 para 60.000-70.000). Repara que no Veritasium ele para mais 100.000 fãs tem posts a passar por apenas 9.000 — aliás escrevi isto tudo antes de ver o vídeo com coisas que já se tornaram óbvias para mim, desculpa a repetição. Uma coisa que é sempre menos relevante no Facebook são links externos. Nesses as visualizações caem para metade ou menos, por vezes residuais. Enfim, haverá alguma coisa gostável ali?
    Sobre o perfil construído ao longo dos anos, há uma coisa que me intriga: li um artigo que dizia que os jovens têm o seu perfil real e o seu perfil online. Coisas diferentes, sendo o online uma versão favorável ou idealizada de si mesmo. E que agora está a acontecer um fenómeno curioso, que se está a tornar extremamente importante que o perfil online seja aceite pelos pares… mais até que o perfil do dia a dia. Isto para mim fez sentido, não sei como essas empresas querem saber algo sobre as pessoas se o online não contém exactamente grande verdade…

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